Este é um espaço interativo, construído pelos alunos da discplina Literatura Brasileira II, ministrada na Universidade Federal do Ceará - turmas 2007.1 & 2007.2. Temos como meta discutir,divulgar e produzir conhecimentos acerca do panorama literário brasileiro compreendido no último quartel do século XIX.

domingo, 23 de setembro de 2007

Iaiá Garcia ( Machado de Assis)

Iaiá Garcia: Uma Idéia Nova

Antonio Carlos Vieira*

Mara Rúbia Freire Jucá

Resumo: Propomo-nos a investigar algumas características realistas presentes na obra Iaiá Garcia de Machado de Assis. Valemo-nos dos caracteres apresentados por Afrânio Coutinho para pesquisar a construção das personagens, os problemas abordados no livro e principalmente o tratamento psicológico dado às personagens. Com esse trabalho tem-se, então, uma outra visão sobre Iaiá Garcia, considerado romance romântico.

Palavras-chave: Iaiá Garcia- Machado de Assis- Psicológico- Características Realistas.

Depois de 1860, na fase do Romantismo liberal e social, a ficção supera a fórmula romântica, invadindo, a partir de 1870, a forma realista, seja na maneira urbana, de análise de costumes e caracteres, seja na regionalista, seja na naturalista. É a ficção nacional, brasileira, consolidada, autônoma.Os gêneros adquirem maior autonomia estética libertando-se da política e do jornalismo. Com a geração de 1870, começa nova influência nas letras, a da filosofia positiva e naturalista.

Na terceira e última fase do romantismo com as Memórias de um sargento de Milícias, A Escrava Isaura, O Cabeleira e Inocência nota-se um movimento de reação contra o gênero puramente idealista, a construção dos tipos e das cenas é mais observada, a realidade passa para o primeiro plano, tanto na pintura dos quadros como na dos caracteres.¹

É nesse contexto que está inserida a primeira fase de Machado de Assis. Iaiá Garcia é a última das obras dessa fase (1878). Machado foi influenciado por autores que já anunciavam o Realismo, como Manuel Antonio de Almeida que, com seu romance Memórias de um Sargento de Milícias, foi considerado por muitos autores um precursor do Realismo. Machado o conhecera quando ainda era um aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional. João Pacheco avisa-nos sobre tal influência:


*Graduandos do Curso de Letras da Universidade federal do Ceará.

1.Coutinho, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Livraria São José: Rio de janeiro, 1964, 2ª ed.

“Está por se fazer um estudo sobre a influência de Manuel Antonio de Almeida em Machado de Assis, de que Mário de Andrade deu algumas amostras ainda que vendo nelas simples aproximações.” (PACHECO, p.17)

Como vemos, Iaiá Garcia mostra-se como uma obra possível de ser analisada do ponto de vista realista. Pretendemos analisar o último livro considerado romântico de Machado de Assis valendo-nos dos caracteres do realismo listados por Afrânio Coutinho no seu livro A Literatura no Brasil, em capítulo dedicado à escola Realista. Questões históricas, influências e características claramente visíveis do estilo que Flaubert é precursor, nos leva a considerar importante essa análise da obra Iaiá Garcia.

Um dos primeiros pontos quando pensamos em Realismo é a atenção dada ao retrato das personagens. Essas são indivíduos únicos, descritos em todos os seus detalhes, sejam estes bons ou ruins, contanto que pareçam verdadeiros. Em Iaiá Garcia encontramos personagens que nos parecem mais verdadeiras graças à verossimilhança de suas descrições.

Como melhor exemplo, temos Procópio Dias, o qual tem as suas características físicas descritas nos moldes realistas. Passa-nos a sensação de ser alguém verdadeiro, que é humano, que pode ter falhas e que por sua fealdade não conseguirá conquistar o seu amor pretendido. O que verdadeiramente aconteceria. Isso nos leva a pensar em outro ponto que é abordado no romance, o casamento por interesse, sobre o qual falaremos mais adiante. O dinheiro, a riqueza de Procópio Dias e a sua posição social não é determinante na sua tentativa de conquistar Iaiá. O autor ao descrevê-lo já nos dá a entender o desfecho nada romântico dessa relação:

“Os olhos de Procópio Dias eram cor de chumbo, com uma expressão refletida e sonsa. Tinha cinqüenta anos esse homem, uns cinqüenta anos ainda verdes e prósperos. Era mediano de carnes e de estatura e não horrivelmente feio; a porção de fealdade que lhe coubera, ele a disfarçava, quando podia, por meio de qualidades que adquirira com o tempo e o trato social.” (pág. 64)

A descrição do senhor Antunes, pai de Estela, é também feita de forma realista e nos faz perceber o modo de pensar da personagem. Com isso, entendemos que o autor tentou revelar a realidade mesmo utilizando moldes românticos. È interessante observar a visão nada romântica da vida que o senhor Antunes tem:

“O senhor Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol nem tudo são vaidades, como quer Eclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss; entendia que há a larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal.” (pág. 21-22).

Podemos pensar ,também, como uma forma de crítica, a inserção da personagem Raimundo no romance e toda a atenção dada a sua descrição, a como o negro era retratado nos romances românticos. Em Iaiá Garcia o negro é um amigo de Luís Garcia, chegando a interferir no desfecho do romance.

Uma das características do Realismo é que qualquer motivo de conflito do homem com seu ambiente ou circunstantes é assunto para o realista. No período que a obra foi escrita havia o preconceito com os casamentos entre classes sociais diferentes. O autor coloca a personagem Estela em conflito com essa situação: “O ressentimento do desnível social e toda a problemática psicológica que o dever de gratidão cria...” (KRAEMER, p. 25). Há críticos que dizem que Machado retrata com essa personagem seus próprios conflitos.

Em todas as obras dessa primeira fase, Machado traz à tona essa problemática. Mas, diferentemente de A Mão e a Luva e Helena em que as heroínas procuram harmonizar o sentimento com a ambição, em Iaiá Garcia Estela com o seu orgulho impõe-se o sacrifício de desistir do seu amor perdendo a oportunidade de ascender socialmente:

“Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque a seus olhos seria um favor, e sua taça de gratidão estava cheia.” (p. 26-27).

Vemos, então, que Machado também mostra em Iaiá Garcia os conflitos do homem com o meio em que está inserido. Característica essa que Afrânio Coutinho também explicita no seu livro, este já anteriormente citado.

Do primeiro romance de Machado à Iaiá Garcia, já na última fase romântica, a evolução é facilmente notável. As narrativas se tornam mais profundas em conteúdo e em técnica, e encaminham-se para a retratação do espírito e da vida interior, ou seja, a complexidade da análise psicológica. É o que Armando Kraemer nos diz:

“Machado se volta de preferência para o eu interior e profundo de seus personagens, e de lá retira uma porção de pedacinhos de alma, com os quais vai mostrar que a criatura humana geralmente não passa de um anão, ridiculamente pretendendo ser gigante.” (KRAEMER, p. 8)

Como diz Afrânio Coutinho e conforme observamos, em Iaiá Garci, os acontecimentos do enredo se dão por causa do caráter das personagens. A personagem de Estela é talvez o melhor exemplo de construção psicológica dentro do romance e de como uma personagem influi no desenrolar do enredo. E assim, Machado a descreve:

“Estela era vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino. Era orgulhosa, tão orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma auréola; mas o orgulho não lhe derivava de inveja impotente ou de estéril ambição; era uma força, não um vício - era o seu broquel de diamante, o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia as cidades castas e santas.”(p. 26)

Fica claro como Machado de Assis dá ênfase ao psicológico de Estela, quando diz que a alma da moça está acima do próprio destino, e diz que o orgulho é uma força maior. Jorge também fica atraído por Estela por causa de algo a mais do que sua beleza:

“A imperturbável seriedade de Estela foi um aguilhão mais, não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pálido.”(p. 24)

Do mesmo modo, Jorge, filho de dona Valéria, é uma personagem que adquire complexidade com a evolução do romance. Jorge era formado em direito, mas não exercia a profissão: “... empregava uma partícula do tempo em advogar o menos que podia – apenas o bastante para ter o nome no portal do escritório e no Almanaque de Laemmert”(p. 14). Era ocioso pelas condições de vida que tinha. A sua preocupação era de gozar a vida freqüentando bailes, teatro, noitadas com os amigos.

De início, podemos perceber em Jorge fortes características do herói romântico. Mas, acreditamos que o autor coloca a personagem desse modo com o intuito de pôr em prática uma de suas principais características desenvolvidas no Realismo: a análise psicológica das personagens.

È muito marcante em Iaiá Garcia o amadurecimento de Jorge. O autor descreve todas as situações que o herói do romance enfrenta para conseguir chegar nesse estágio de enriquecimento da alma do ser humano:

“Jorge sentiu então um fenômeno próprio de tais crises – um movimento de ódio a todo o gênero humano desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortês, violento, deliberadamente mau: efeito transitório, ao qual sucedeu um abatimento profundo.” (p. 45)

Ao voltar da guerra, a própria personagem faz uma auto-avaliação dos quatro anos que propiciaram o surgimento de um novo homem, de um homem amadurecido, daquele que sairá cheio de medo e angústia:

“No fim de outubro volveu ao Rio de Janeiro. Tinham passado quatro anos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge comparava os tempos, as angústias e as esperanças da partida com a glória e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz e nem triste, mas nesse estado médio, que é a condição vulgar da vida humana.”(p. 45-46)

Iaiá Garcia, a qual consideramos partilhar com Estela o protagonismo do romance, apresenta uma diferença notável em relação aos romances românticos primeiros, também não escapa à uma descrição que passa pelo psicológico. É interessante observar como Machado mescla dados aspectos estéticos e produz uma heroína predominantemente realista porém sem deixar de ter muitas das características românticas, como se pode observar no trecho abaixo:

“O que se passou naquele cérebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vínculo espúrio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua inocência, assim como lhe dissimulava toda extensão possível do mal, assim também lhe encobria as asperezas e os óbices da execução. Era o coração que lhe designava esse papel do anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direto ao fim sem o temor que dá a experiência e a contemplação da vida. Quem sabe? Não conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeita-la; começava talvez a aprendê-la.” (p. 91)

Vemos que Iaiá já era uma menina de desenvolvida inteligência e astúcia, mas sua inocência, característica recorrente às mocinhas românticas, não a deixava ver o mal que suas ações poderiam vir a causar. Fica-se comprovado, claramente, que Iaiá é diferente das demais “mocinhas” quando o narrador fala do poder de Iaiá caso case-se com Procópio Dias:

“Iaiá possuía de certo a força necessária para dominar desde logo o marido; ...” ( p. 106)

Essa força de Iaiá é uma constante em suas descrições ao longo romance. Começa desde sua meninice perdurando até torna-se mulher. A primeira impressão, envolvida por sentimentos mais profundos, de Jorge em relação à Iaiá, representa o melhor retrato dessa heroína que não segue os moldes românticos tão rigidamente:

“No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa. Aquela mistura de franqueza e reticência, de agressão e meiguice, dava a filha de Luís Garcia uma fisionomia própria, fazia dela uma personalidade; mas a fisionomia era ainda confusa e a personalidade vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dois sentimentos contrários; tinha curiosidade e repugnância de penetrar o caráter da moça, e conhecer, e distinguir os elementos que o compunham.” (p. 112-113)

Iaiá tem esse caráter complexo que fascina Jorge e leva-o a apaixonar-se , diferindo dos romances românticos, em que a beleza das mocinhas é o que desperta os amores incontroláveis. Beleza Iaiá esbanjava desde criança, mas no caminhar final do romance a moça apresenta, além disso, uma personalidade, um espírito de vida interior. Seu caráter era real.

Analisando os aspectos expostos ao longo deste artigo, e acreditamos serem estes os mais relevantes, torna-se evidente como Iaiá Garcia, classificado como romance romântico, pode ser visto com outros olhos, neste caso olhos mais realistas. Se isso é possível , pensamos ser a classificação citada incompleta ou talvez incorreta. Sendo Machado de Assis o maior escritor realista de nossa literatura, ao ler-se Iaiá Garcia pode pensar-se que Machado só escreveu romances românticos por questões cronológicas, por ter-se iniciado como escritor quando a escola romântica estava em voga, pois vemos claramente com Iaiá Garcia o escritor realista que ele é. As personagens deste romance são muito mais do que meros reféns do amor, do sentimentalismo, são seres que pensam, refletem, e tomam suas atitudes conforme suas personalidades. O psicológico das suas personagens é descrito de forma a torná-las mais reais e assim suas ações influem uns nos outros, desenvolvendo o romance de um simples flerte romântico, para uma história de resignação, conflitos pessoais, familiares e sociais e de um amor que desenvolve-se e tem um florescimento.

Observando-se os caracteres realistas encontrados em Iaiá Garcia, não se pode dizer ser esta obra de Machado de Assis totalmente romântica, assim como também não podemos classificá-la como totalmente realista. Essa obra traz muitas inovações em relação aos romances românticos e julgá-la somente como tal é desconsiderar essas inovações. Chegamos a conclusão que o melhor é conceber Iaiá Garcia como obra transitória, valorizando assim tudo o que ela tem a nos oferecer.

Referências Bibliográficas:

ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. São Paulo: Globo, 1997.-

COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Livraria São José: Rio de Janeiro, 1964 2ª ed.

KRAEMER, Armando. Os Romances de Machado de Assis. Livraria Sulina Edioral, Porto Alegre, 1971.

PACHECO, João. A Literatura Brasileira/vol. III. O Realismo. Editora Cultrix: São Paulo 3ª ed.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Estudo Critico e biográfico – 6ª ed. Belo Horizonte/ Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.